DIREITO À DESCONEXÃO DO TRABALHO

4 ago, 2020

 Em primeiro de janeiro de 2017, a França, inovou ao incorporar em sua reforma da legislação trabalhista (também conhecida como Lei do El Khomri em referência ao sobrenome da ministra do trabalho do país, Maryam El Khomri, à época) o direito do empregado à desconexão.  A positivação desse direito ganhou repercussão mundial pelo pioneirismo.

Insta observar o contexto no qual a lei foi elaborada, advém de uma série de impactos tecnológicos que tem influenciado a vida de todas na revolução 4.0.

Além do já extenso leque de proteção dos trabalhadores daquele país, garantido pela União Europeia, mais esse direito que surgiu como resposta a um estudo de 2016 do órgão de pesquisas Éléas, especializado na qualidade de vida no trabalho e na prevenção de riscos psicossociais daquele país.

Naquele ano, foram divulgados[1] dados de que mais de um terço dos trabalhadores (37%) usavam ferramentas digitais fora do horário de trabalho, com maior proporção entre executivos (81%) e jovens entre 15 a 34 anos (76%). Apenas um em cada cinco entrevistados, o que corresponde a 22%, afirmaram que seus gestores interviam para limitar o uso dessas ferramentas digitais fora do tempo de trabalho. Ou seja, pouco menos de 80% dos gestores nãos e preocupavam com as restrições dos usos de dispositivos tecnológicos fora do horário de trabalho. Na mesma pesquisa, constatou-se que seis em cada dez trabalhadores acreditavam que deveria existir algum tipo de regulamentação nas empresas a fim de restringir o tempo de uso de dispositivos eletrônicos fora do horário de trabalho.

Ainda, foi averiguado que seis em cada dez entrevistados (59%) achavam que o digital é visto como um progresso, especialmente os jovens de 15 a 34 anos (65%), os executivos (63%) e artesãos, comerciantes e empresários (73%). Esses últimos dados são interessantes, pois apenas um pouco mais da metade consideram os avanços tecnológicos como um progresso na França. Ou seja, a outra metade não vê a tecnologia como um progresso. É surpreendente, já que, certamente, existe um avanço no sentido de desenvolvimento das técnicas. Mas os números sugerem certa insatisfação com a tecnologia pelos trabalhadores franceses.

O sentimento de “falta de progresso” é sintomático de uma sociedade que vê a evolução técnica, mas não está, necessariamente, satisfeita ou mais feliz com esses avanços.

Ainda, um em cada dez, afirmaram ter medo de seus postos de trabalho serem substituídos por máquinas, bem como 30% afirmaram que há ligação entre estresse nas relações laborais e a tecnologia.

Esses números repercutiram muito na mídia local e escancararam uma realidade que já era visível na prática, com isso, o artigo L. 2242-8 do Código do Trabalho Francês foi modificado[2].

Assim, as empresas francesas com mais de 50 funcionários, a partir daquela data, deveriam elaborar uma carta depois de consultar o Comitê Econômico e Social para definir as modalidades para o exercício do direito à desconexão, bem como a implementação, para funcionários e gerentes, de ações de treinamento e conscientização para o uso razoável de ferramentas digitais, naquele país, conforme a nova lei.

Na prática, cabe às grandes empresas, em associação com o Comitê Econômico e Social, estabelecer como se dá a fiscalização e regulamentação do direito à desconexão na França. Além disso, estão previstos treinamentos e atividades a fim de conscientizar empregados e gestores sobre o uso razoável dos dispositivos digitais. Portanto, ainda que as pequenas empresas não sejam diretamente atingidas ou que a lei não determine uma limitação objetiva, introduziu-se, pelo direito, a primeira norma no sentido de restringir o uso de eletrônicos fora do horário de trabalho.

Em decisão de 2018, ao interpretar o texto da norma, os tribunais franceses condenaram uma empresa britânica que obrigou um funcionário francês a manter o telefone ligado 24 horas por dia, para o caso de ligações de emergência. O simples fato de ter que ficar conectado fora do horário de trabalho, em caráter de sobreaviso, ainda que ele não tenha recebido qualquer ligação, foi considerado o suficiente para o pagamento de indenização em razão do direito à desconexão, conforme artigo da publicação francesa La Dépêche du Midi, a indenização chegou a 60 mil euros[3].

Outros países foram influenciados pela inovação francesa. Por exemplo, em março de 2018, o vereador do Brooklyn, Rafael L. Espinal Jr., lançou um projeto de lei que quer proibir os empregadores do setor privado na cidade de Nova York de exigir que os funcionários verifiquem correio e outras comunicações eletrônicas e respondam a eles fora do horário de trabalho.

Em Québec, no Canadá, foi apresentada também uma proposta de lei semelhante, que ficou conhecida como Bill no 1097. Há projetos em trâmite na Itália, Alemanha, Coreia do Sul, entre outros.

A repercussão da norma em tantas outras nações se deu porque o problema do uso desenfreado da tecnologia é um fenômeno global. O próprio artigo da lei francesa deixa claro que o objetivo da lei é de tutelar os períodos de descanso e o equilíbrio entre trabalho e vida privada, já que é evidente esse desequilíbrio na sociedade pós-moderna digital. Não é preciso ser especialista para verificar que há um comportamento que beira o compulsivo quanto ao uso de tecnologia, isso, é claro, não é diferente na relação de trabalho.

Portanto, o direito à desconexão, por tratar de um problema global de mau uso dos dispositivos tecnológicos e de comunicação para o trabalho, que pode se intensificar com a migração em massa de prestação de serviço presencial para a modalidade homeoffice com a pandemia de Covid-19 tende a ser um novo direito do empregado nas relações de trabalho e, consequentemente, deverá ser incorporado pelos ordenamentos jurídicos mundo afora.

Nesse sentido, merece destaque a lei francesa que não impôs um modelo homogêneo a ser seguido por todas as empresas, as de pequeno no porte, inclusive, ficaram de fora. A ideia é que cada setor tenha suas peculiaridades respeitadas. Além disso, cursos e treinamentos possuem previsão na norma laboral francesa, o que demonstra o caráter educativo, muito mais do que impositivo, do direito à desconexão do país europeu.

A lei francesa é um bom exemplo a ser seguido por outros países e por empresas para prevenção de moléstias ocupacionais psicológicas, especialmente, na vigência das orientações de distanciamento social em razão da crise sanitária da Covid – 19.

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MARCELA CATALDI CIPOLLA – ADVOGADA
Giannella Cataldi Sociedade de Advogados

[1] ÉLÉAS (França). Enquête «Pratiques numériques des actifs en France en 2016». Communiqué de Presse. Paris, França, 2016. Disponível em: http://www.eleas.fr/app/uploads/2016/10/CP-Eleas-Enqu%C3%AAte-Pratiques-num%C3%A9riques-2016.pdf. Acesso em: 20 out. 2019.

[2] “A fim de garantir que os períodos de descanso e afastamento e o equilíbrio entre trabalho e vida privada sejam respeitados, as empresas envolvidas deverão estabelecer ‘ferramentas para regular a ferramenta digital’ (…) Os procedimentos do pleno exercício pelo empregado do seu direito à desconexão e implementado pela empresa sistemas para regular o uso de ferramentas digitais, com o objetivo de garantir que os períodos de descanso e afastamento e a vida pessoal e familiar sejam respeitados” (tradução livre).

[3]LA DEPECHE DU MIDI. Droit à la Déconnexion: il Gagne 60 000 €. Toulose, França, 04 ago. 2018. Disponível em: https://www.ladepeche.fr/article/2018/08/04/2846612-droit-a-la-deconnexion-il-gagne-60-000-e.html. Acesso em: 20 out. 2019.

 

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